quinta-feira, dezembro 10, 2015

Aos nossos alunos - 5

Drummond tem um soneto chamado “A ingaia ciência” em cuja primeira estrofe ele fala da madureza como um presente que nos tira o sabor. Ele não diz quem nos dá o presente, nem identifica que sabor nos é subtraído, usa o substantivo “prenda” – perigosamente próximo do verbo “prender” – e o verbo “raptar”, parecendo iniciar o texto com o argumento de que a maturidade é algo que rapta a juventude, a inocência e os sabores da vida.
Mas a segunda estrofe nos tira dessa confortável e já sabida definição e, num jogo lindo de palavras, nos desafia a pensar mais. Drummond repete a palavra “madureza”, que tinha ficado presa nas estruturas subordinadas da primeira estrofe, e recomeça uma frase, acrescentando que ela “vê o círculo vazio onde se estenda, e que o mundo converte numa cela”. Ele disse, portanto, que a madureza vê o vazio em que poderia se estender, já que o modo subjuntivo é o da possibilidade e da dúvida e não o da certeza, e acresce que é o mundo que faz dela uma cela. E não diz “ela é uma cela”.
Aí ele entra nos tercetos e diz pela terceira vez a palavra “madureza”, como se fosse de novo recomeçar a conceituar: a madureza não só sabe o preço de tudo (usa uma bela metonímia, pois não diz “tudo”, mas “amores, ócios e quebrantos”), mas ainda nada pode contra seu próprio saber e contra si mesma. E, na última frase, afirma, noutra metonímia linda, que o olfato e o olhar agudos e a mão, “livre de encantos, se destroem no sonho da existência”.
A estrutura “se destroem” pode ser lida como “são destruídos” ou como “se autodestroem”, e “sonho da existência” nem é agente da passiva, nem é objeto direto. É apenas uma circunstância. Pergunto: de tempo? De lugar? De modo? De condição? Há ainda, no texto, uma mão livre de encantos. Ou seja: Drummond pensa que os encantos são uma prisão. E que, portanto, a madureza é uma espécie de liberdade, uma janela pela qual se pode fugir dos encantos ou dos enganos do mundo.
Pois bem: esse poema, apesar da forma medieval do soneto, é moderno. O poeta não se pergunta mais quem nos prendeu na madureza –  se o destino, se Deus, se a ciência... Isso não importa mais.  A questão do homem moderno é outra:  é o que fazer com ela, com essa surpresa que não conseguíamos ter e que agora se nos apresenta. Duas expressões – “círculo vazio” e “surpresa da janela” – criam metáforas de saída, de ver além de; pode-se passar por um círculo vazio; não se pode passar por um preenchido. E, sem vendas, pode-se ver surpresas na janela, pode-se ver o novo, pode-se ver a complexidade de sentidos na qual vivemos. Nesse contexto, poderíamos, com as possibilidades e a força de nossa linguagem e dos nossos meios de comunicação, buscar entendimentos. Mas o que temos é mais meios e canais para expressar nossos preconceitos; o que temos é a desqualificação do ensino da língua; o que temos é a língua servindo para vender e não para entender, explicar, acatar, tolerar...
Diferentemente de Drummond, a maioria de nós (que hoje tanto vivemos) caiu na armadilha da simplificação e da falta de conteúdo. Nunca vivemos tanto, nunca tivemos tantos meios de comunicação tão eficientes e tão baratos... Neles nunca tivemos tantos caminhos e lugares de comunicação e de agregação... E nunca temos o que dizer que, realmente, faça progredir nossa tolerância e pluralizar nossos conceitos... Esses caminhos e lugares transformaram-se em armadilhas, torres de babel, labirintos, interdições... São caixas de ressonância de nós mesmos... Todos dizem ou a mesma coisa ou pensam dentro da lógica bipolar, ou seja, o que eu penso está certo; quem não pensa como eu está errado. Ninguém quer olhar através da janela, através do círculo vazio, todos ficam dentro das prisões do mundo, como diz Drummond.
É aqui que o poema de Drummond dialoga com Nietzsche, que pensava que se deve apagar, com crueldade, o que se torna velho em nós; e isso não conseguimos fazer. Nossos fabulosos meios de comunicação amplificam nossos preconceitos e intolerâncias. Ou apenas nos enviam mensagens de compras desnecessárias. Estamos todos presos dentro desse mundo não só infantil, falsamente fácil e feliz, mas também sem sentido.
Os efeitos discursivos do poema de Drummond que estamos analisando não estão na forma (pois o autor mantém a estrofação, a  métrica e a rima da tradição), mas na sintaxe, na pontuação e na sonoridade oclusiva e consonantal, que criam uma atmosfera desconcertante, como a dessa modernidade que tanto nos prometia e que nos ofertou um conjunto vazio de coisas sem sentido nenhum. Nunca fomos tão ricos, tão conectados, tão infelizes e tão sozinhos!
Minha madureza é um privilégio que poucos têm, sou como o deus Jano, que nos ajudou a dar nome a “janeiro”, o mês que tem uma face virada para o ano novo e outra virada para o velho: com uma de minhas faces, vi a madureza chegar devagar e depressa; diante da outra face estão os meus alunos aos quais posso falar.
Vocês estão começando a vida. Não caiam nessas armadilhas da simplificação, da repetição. A leitura literária é mais que um prazer simples que parece poder ser substituído por outro qualquer, como beber em excesso e escutar música tão alto, que não se pode conversar; é mais que a escrita da aventura, é mais que fuga, escapismo ou evasão. É uma experiência de entendimento do outro, de exploração da diversidade e da criação de possibilidades de se reconhecer no outro. Não há paz possível entre nós e em nós se não tivermos acesso a essa “mágica complementar”, como diz Contardo Caligaris, a qual nos proporcionou, ao longo de nossa História, não só ver de vários ângulos, mas também desenhar e redesenhar nossos horizontes e nossas utopias, democratizar a alfabetização e ampliar o acesso aos livros e, consequentemente, a novas e surpreendentes ideias e conceitos.
Esse mundo que nos aprisiona no hedonismo sem limite, que nos prende a sonhos individuais e materiais, que resume nossa escuta e nossa fala reflexiva, que só nos permite dizer o que já foi dito ou que nos faz dizer apenas o que deve ser dito não é bom.
Convido-os a ler, a pensar por si próprios, a ter coragem para negociar a sua diferença com a do outro, a parar para ver a si próprio, a aprender a estar consigo mesmo a fim de não se perder e, por fim, a construir sonhos coletivos...
A leitura literária é um ato de resistência a esse projeto perigoso de superficialidade, de uniformização e de futilidade por que estamos passando. Estamos sendo convidados a nos anestesiar com drogas de muitas espécies para não pensarmos em saídas, em perdões, em diálogos... Essa solidão estrutural que nos cerca... É porque estamos indo no caminho errado. Esse barulho que nos cerca... É porque não queremos ouvir o outro. Essa falta de conteúdo... É porque não estamos pensando por nós mesmos. Precisamos de um ajuste de rota.
No seu poema difícil, Drummond assinala a ciência triste da madureza. Eu não acho que minha ciência é triste, só difícil de escutar: o sentido da vida existe e está nas nossas relações, está no esforço do afeto, está na criação que cada um tenta fazer de sua própria utilidade; está, enfim, na tentativa de realização do sonho de seguirmos de mãos dadas, como Drummond disse em outro poema. No rumo de um mundo “sem a injustiça dos prêmios”, como disse Drummond em outro poema original. “Isso são utopias”, pode-se pensar. Mas minha última ciência é que é mortal abandoná-las.

14 Comments:

At 10:04 AM, Anonymous Anônimo said...

Pimpim,

Ouvi recentemente de um filósofo que o pior de irmos maturando é termos a impressão de que já vimos todos os filmes humanos.

É visível a evolução técnica da humanidade, mas não enxergo nenhuma outra, mesmo depois de 2000 anos da vinda do Messias Salvador.

Seja como for, o texto é excelente. Somente pessoas muito elevadas como vocês sabem enxergar tudo isto num poema.

Beijos,

Alberto Suassuna

 
At 12:27 PM, Anonymous Anônimo said...

Meu Deus, que escrito tão sublime! É por essas e outras que ratifico aquela frase que a senhora diz: "Deus é tudo, menos doido." Só Ele sabe o quanto foi positivo para a minha futura formação ter a senhora no meu caminho, em meio a tantas pedras. Tem uma crônica de Rubem Braga, "o médico à procura do ser humano", que diz exatamente isso: temos saudade daquele médico que ouve, que toca, que olha o paciente, que era o herói, já que a Medicina transformou-os em unidades biopsicológicas móveis, portadoras de conhecimentos especializados e que vendem serviços. Te agradeço por me ensinar o caminho de Drummond, Clarice, Cecília, de Dom Quixote e o seu: a utopia contrária ao mundo. Obrigada por ser o etileno da minha madurância não só para o vestibular, mas para medicina e a vida. Ainda bem que a Literatura enlaça os nossos caminhos e faço a senhora presente nele. Somos trança! Admiro você demais! Eduarda Moura Cavalcante

 
At 12:29 PM, Anonymous Anônimo said...

Flavia, também me coloco na sua lista de admiradores. Vc ajudou a clarear mais ainda meu sábado. Denis Meneses.

 
At 12:31 PM, Anonymous Anônimo said...

Maravilhoso texto para reflexão, não só do contexto do exercício literário, da nossa humanidade!!! Obrigada por partilhar as suas utopias!!l
Flavinha, você é maravilhosa!!! Que Deus te ilumine, sempre!!! Beijos. Amália Guimarães

 
At 12:32 PM, Anonymous Anônimo said...


Ô mulher maravilhosa... Luísa Nejaim.

 
At 10:13 AM, Anonymous Anônimo said...

Nossaaaa... voltei aos bancos da escola! Que prazer ler texto tão maravilhoso! Teresa Branco.

 
At 10:26 AM, Anonymous Anônimo said...

Pimpa, seu texto é perfeito, bela reflexão.
Maria Ângela Chiappetta.

 
At 10:29 AM, Anonymous Anônimo said...


Lindo. Mayra Christ

 
At 2:02 PM, Anonymous Anônimo said...


A Literatura ao falar deste tempo também se deu conta de que a modernidade contraria uma das necessidades do texto literário: o tempo. O tempo é uma das possibilidades temáticas do poema de Drummond, mas também é um dos principais entraves para a não leitura do poema de Drummond, sobretudo por nossos jovens atualmente. Literatura não nasceu pra ser fast food em tempos de fast food. O texto literário requer degustação, apreciação, embriagues e ressaca. Essa última, muitas vezes, é um convite constante à releitura. E para tudo isso requer tempo. Tempo que não se tem neste período de descartabilidade das coisas e do próprio ser humano.

Lindo texto, Flávia!
Isaac Melo

 
At 2:38 PM, Anonymous Anônimo said...

Simplesmente belo. Inteligência sublime a sua, amiga Flávia. Requinte de arte pois traduz com simplicidade e clareza e "madureza" as difíceis palavras do gênio Drummond. Parabéns. Cristiano Torres.

 
At 2:39 PM, Anonymous Anônimo said...

Palmas! Maria Ângela Chiappetta.

 
At 5:52 PM, Anonymous Anônimo said...

Lindo. Mayra Christ.

 
At 5:55 PM, Anonymous Anônimo said...

Se não me engano, 52 pessoas "curtiram" esse texto no facebook. Eu mesma transcrevi os comentários aqui. Flávia Suassuna.

 
At 6:02 PM, Anonymous Anônimo said...

Houve também dois "compartilhamentos" dos textos no Facebook - Eduarda Moura Cavalcante e Luiselza Pinto. Agradeço a atenção. Flávia Suassuna.

 

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