domingo, fevereiro 09, 2014

Humanidade e transcendência

         Desde muito pequena, eu me senti diferente. Quando eu tinha apenas sete anos, no dia da minha primeira comunhão, embora minha mãe estivesse com o belo vestido que eu pedira que ela usasse, meu pai e meu irmão chegaram à igreja atrasados, da granja, muito sujos e desarrumados, e aquilo foi uma experiência forte de “desarranjo” social.
Essa sensação perdurou confusa e silenciosa em mim até os doze anos, quando minha tia Germana me explicou como Platão pensava. Um jeito de ser, estar, pensar, fazer abriu-se para mim. E mais nunca me encaixei, de perfeito, no mundo. Até porque era outro o mundo que eu, a partir daí, queria. Meu caminho na religião e na literatura foi a “gratificação substitutiva” que construí e que moldou o que sou e todas as minhas escolhas.
É lógico que a minha relação com essas duas “palavras” foi um processo. Tive, por exemplo, de início, com a religião uma relação de medo, e Deus foi um anjo julgador severo a quem eu pedi tudo e de quem esperava tudo. Fiz, nesse momento, sacrifícios inaceitáveis – fui doente à missa, desmaiei de fome na igreja... – com medo desse Deus esmagador e poderoso, cujo retrato, eu pensei, estava no altar da Capela Sistina, em Roma, tirado por um fotógrafo chamado Miguelângelo. Eu tinha pesadelos com aqueles corpos retorcidos, caindo no inferno, e temi aquela mão erguida em riste durante toda a minha infância.
Na adolescência, fui estudar num colégio de freiras católicas, e tudo piorou. Elas fortificaram esse Deus bruto e mostraram-me anulações e castrações como caminhos que segui, aos trancos e barrancos. Sim, porque havia, no mais recôndito de mim, aquela discordância ontológica que foi minha primeira célula e que, portanto, me constituiu.
Aos doze anos, fui apresentada à literatura, que, junto com as inquietudes religiosas, me deu um arcabouço de palavras, conceitos, ferramentas e possibilidades para me mover daí para a frente.
Mas nunca saí deste cativeiro ambíguo: eu moro e sobrevivo num real bruto, inaceitável, injusto, errado; mas tenho um horizonte melhor, que me orienta, me faz, me identifica, me move. Meu sentido é menos (mas também) a sobrevivência neste mundo esconso do que a visão brilhante desse possível, que me faz perguntar sempre “por que não?”.
Como há sempre espaço e jeito dentro de qualquer prisão, fiz, devagar, disso tudo uma espécie de barco que me permitiu continuar a travessia.
Aos dezoito anos, tornei-me a melhor aluna de história da escola em que estudava. Meu professor era marxista e me recontou os fatos numa outra perspectiva e com outras palavras. E com tal certeza científica, racional e empírica, que me paralisou.
Mas aquilo tudo me serviu para percorrer a história humana e começar a criar sentidos: inicialmente, posso citar um tempo impreciso quando a tradição situava o que era esperado de cada indivíduo do grupo, desde o nascimento até a morte. Nesse contexto, a religião produzia sentidos para a vida e para a morte e explicitava rituais; os mitos não só explicavam por que as coisas são como são, mas também “sustentavam” as interdições, necessárias para a manutenção e mesmo a consolidação dos laços sociais; a família e os antepassados (e/ou contadores de histórias) detinham um saber que “perpetuava” o sentido de algumas experiências de que o grupo se apropriava como referência – chefes, reis, santos e guerreiros tinham suas vidas exaustivamente contadas e recontadas, e isso tudo orientava escolhas morais, determinava valores, estabelecia caminhos, dava respostas.
É claro que levanto aqui conceitos que parecem imutáveis, como numa vitrine, mas eles traziam desvios, tanto que, mesmo lentas, mudanças ocorreram. Para que essa “equação” se completasse, vários termos são necessários: o tempo passa muito devagar, as comunidades são pequenas e exercitam a oralidade, as identidades são fortalecidas e legitimadas no dia a dia e os homens se pensam como partes integrantes de um todo.
Na Idade Média, por exemplo, o universo era explicado como se fosse uma catedral: anjos existiam, milagres aconteciam, os astros moviam-se pelo poder de Deus, e os eventos mais simples eram determinados pelo Seu dedo, que tudo regia, como a uma orquestra cósmica imutável.
Mas a Idade Moderna começa a “quebrar” essa lógica – a ampliação do processo de urbanização, as grandes navegações, os descobrimentos e seus relatos plásticos e escritos, a imprensa e a reforma protestante fraturaram aquela visão monolítica, e novos paradigmas instauraram-se: o fortalecimento do capitalismo comercial e a consolidação dos Estados nacionais faziam par com o Absolutismo, em que Deus fortalecia o Rei que, por seu turno, tinha o “direito divino” de governar.
Aliás, o romance, como gênero, nasce no começo do século XVII, com o “Dom Quixote”, de Cervantes, em circunstâncias muito especiais, mas, realmente, só se desenvolve no final do século XVIII, quando o Iluminismo se contrapõe ao Absolutismo por meio das ideias de progresso e razão e da afirmação do homem como sujeito que observa a realidade.
Durante toda a Idade Moderna, observa-se, assim, uma crise crescente nas relações dos indivíduos embrionários com a tradição e mesmo com a religião, que, até então, amparavam suas escolhas de vida e sua visão de mundo. Aí começa o século XIX, período que Eric J. Hobsbawm, sabiamente, localiza entre 1789 (ano da Revolução Francesa) e 1914 (começo da Primeira Guerra Mundial) e que, sem dúvida, é o século de ouro do romance.
É que o sujeito ocidental, efetivamente, se desliga da tradição e da religião (que falavam por ele), e se constata uma compulsão de falar, escrever, narrar, para elaborar uma nova ordem – a burguesa industrial. E a literatura se constitui como um contraponto necessário que elucidava novos costumes, novas relações sociais, novos comportamentos, novos valores; que criava identificações e que apresentava ideias, teorias, discussões, argumentos, contra-argumentos, exemplos, experiências. Balsac, Vítor Hugo, Stendhal, Charles Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, lá na Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio Azevedo, aqui no Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em que um narrador onisciente, linear, cronologicamente ordenado, isento, objetivo e predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição e da religião”, digamos assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido, explicação, elaboração, ressignificação...
O século XIX foi a extrema-unção da síntese teocêntrica anterior, com seu cientificismo exacerbado: onde antes se viam poderes miraculosos em operação, a ciência disse que havia leis fixas e imutáveis. O pensar científico venceu o religioso, e a ciência tomou o lugar da religião, que passou a ser considerada irreal, infantil, primitiva, neurótica, opressiva, irracional. É como se o homem tivesse aprendido a lidar com suas questões, sem recorrer a Deus como uma hipótese explicativa.
De fato, a ciência nos ajudou a derrubar, quando surgiu, aquela ordem religiosa e opressora dominante, mas os interesses econômicos, ao cabo, conseguiram domá-la e colocá-la a seu serviço, e ela não fala mais essa língua da oposição de que sempre precisamos.
Aí as guerras mundiais do século XX instauraram o malogro da razão e, consequentemente, da ciência e do progresso material. Desde 1914 até 1989 (ano da queda do muro de Berlim), instala-se o antitradicionalismo, ou seja, as novas gerações desfazem o que foi feito pelas anteriores. E a quebra da tradição romanesca aparece como consequência disso: a fratura da lógica, da perspectiva, da linearidade narrativa, da cronologia e mesmo do narrador; o aparecimento do monólogo interior, ou seja, da narração não episódica; a transgressão do código da língua; a retração do descritivo; a quebra das fronteiras entre realidade e imaginação e o narrador que ocupa um lugar de exceção são traços novos que revelam outra nova ordem, ainda mais complexa, cheia de conflitos e encruzilhadas.
A literatura parece não fazer parte desse novo século que substituiu a palavra – o DNA do século XIX – pela imagem – o DNA do século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas e os inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres narrativos e que nossos relatos são influência de nosso tempo, ao passo que o influenciam, como uma cobra que morde o rabo.
Talvez o declínio da função paterna, constatado nos consultórios, e o apagamento da figura de Deus, nos corredores do Vaticano, tenham esmagado o narrador tradicional. Mas o fato é que, sem o primeiro, continuamos a contar histórias e, sem o segundo, a rezar.
Virginia Woolf, James Joyce, Durrel, Pasternak, Saramago, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos recontam, revelam, tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do esgarçamento da hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino, da falta de segurança, de certeza, de sentido, da relatividade, do medo do tempo em que nos coube viver, nós, sujeitos do século XX.
Este tempo tem incoerências, é verdade – ele autoriza a diferença e, portanto, torna desnecessário o relato da experiência do outro, o que é um ônus – mas ele também traz bônus, ainda pouco visíveis e muito amedrontadores, consequentemente.
Ao contrário do que Marx pensava, há nele uma nova experiência religiosa que precisa ser avaliada. A religião não é um ópio alienador – ela triunfa sobre todos os avanços científicos e tecnológicos e sobre todos os modelos empíricos e matemáticos que pudemos erguer. Mas ela está diferente.
Rubem Alves, no seu livro “O enigma da religião”, nos incita a pensar na palavra “imaginação”, que, diz ele, é uma operação da consciência humana e que, ao lado da arte, da religião, da cultura, nos faz aquilo que somos – uma ontologia única e diferenciada da dos animais. Portanto, nossa ordem (histórica, social, psicológica e espiritual) é diferente da natural, que não dá conta de nossas complexidades; apesar das tentativas malogradas de estudiosos da sociologia e da antropologia, que tentaram nos explicar  por meio dos mesmos métodos das ciências da natureza, quedamos surpresos com o reducionismo de suas análises.
É verdade que nem toda experiência religiosa nos ajuda a pensar sobre nosso tremendum. Mas também o é que temos rezado de outra forma – nunca deixamos de buscar respostas; de ter coragem, apesar daquilo a que chamo “morte de Deus”; de ter esperança, apesar dos campos de extermínio; de ter filhos, apesar das infelicidades gerais... E toda experiência de esperança não pode ou deve ser considerada religiosa?
Podemos hoje pensar com mais liberdade, dizer mesmo que a religião está perto da arte, da beleza e do riso; que ela é o grito dos oprimidos, como o fez Marx; ler os livros santos e seculares, a partir de nossas ansiedades e esperanças; negociar e realocar suas utopias e seus desesperos, recriar suas metáforas... sem medo das fogueiras da Inquisição... Embora seja menor sobre nós a influência da religião, até porque muito erramos em nome dessa “palavra”, não o é a experiência com Deus, cuja dimensão tem nos ajudado a escrever a utopia da diferença e da tolerância, novo sonho velho sobre o qual se montam nossas mais belas ações e nossos mais nobres pensamentos. E, quando ainda restam energias para a invenção de novas utopias e novas lutas por um mundo melhor, é porque estamos rezando – com outras palavras –, mas estamos rezando.
Não quero dizer com isso que a contemporaneidade é consertada e que, enfim, chegamos a um tempo em que tudo é justo. Mas que há (como sempre houve) quem lute ainda pelos valores humanos, apesar das forças que sempre conspiraram e conspiram contra eles, não sei se mais, tão ou menos fortemente. E que a ideia de Deus ainda nos ajuda nesse projeto sem fim de um mundo com uma significação humana.
Além disso, nem o real é neutro, nem pode ser copiado; como diz Piaget, ele é uma organização mental de que nem sempre tomamos consciência. Freud mesmo nos presenteou com a ideia de que sonhos têm significado e que seu absurdo é uma forma de revelar verdades que nos pertencem. Nesse contexto, o tutano da consciência e, portanto, da religião é a emoção (não a descrição) e o valor (não o fato) – descrever é o papel da ciência; constatar fatos, do jornalismo. Nossos símbolos (presentes no pensamento religioso e no artístico) nos unem e falam de uma relação vivida e a viver, a qual teve ou faz sentido para nós (novos sentidos, é claro, ainda não nominados; daí a importância de continuarmos em busca de novas palavras, estendendo o léxico e as possibilidades sintáticas das línguas, como vêm fazendo os escritores modernos, que colocamos no lugar dos profetas).
Portanto, estamos condenados à consciência, à cultura, à arte e... à religião. Nenhuma delas é temporária, nem descartável. Pois só com elas seguimos... É claro que entendemos tudo isso por meio de conceitos inimagináveis por um homem medieval, mas seguimos construindo colossos e desastres, como sempre... Porque acertamos, erramos e porque não nos conformamos, lá dentro, nem com o passado (seja ele qual for, já que não o recuperamos, a não ser pelas lembranças), nem com o real presente que nos cerca. E queremos transformá-los num futuro melhor (que não é apenas uma consequência reta e previsível, pois milagres insuspeitos acontecem)... É notório que isso faz parte das coisas de que não devemos falar no contexto atual, pois o discurso mágico está marginal e silenciado ou trancafiado nas histórias de trancoso ou na literatura. Mas sou uma escritora, e escritores falam daquilo que todos calam, quando é preciso.
 Isso somos nós... Ou é Deus com seus truques?