domingo, maio 12, 2013

"A confissão da leoa", de Mia Couto

            Li, pela primeira vez, Mia Couto, que considero um milagre político: ele tornou-se um escritor de sucesso mundial, apesar de ser usuário da língua portuguesa e de ser africano.
Esse parágrafo impactante não tem nada a ver com a relação de verdadeiro amor pelo português e pela África que tenho desde menina.
            Meu pai me contava uma história meio sem fim, como a das mil e uma noites, sobre um menino chamado Serafim que, clandestino num navio, chegou à África e viveu aventuras mirabolantes, na companhia do cozinheiro do navio, seu amigo inseparável. Essa ligação, ao mesmo tempo afetiva e narrativa, com o continente fez o esboço de uma tatuagem, hoje nítida, que trago no coração.
A língua portuguesa, por sua vez, foi a ferramenta que me coube para que eu fosse o que sou – uma professora de língua e literatura e uma escritora, ainda que mal publicada.
Quando cresci, outros escritores e diretores de cinema me contaram mais sobre a África. Mas eu gostei de saber dela por um africano. Mia Couto é de Moçambique e falou de minha amada África com minha amada língua portuguesa, acrescida de variações lindas e criativas. Mas o bonito de tudo foi o que ele disse: que os africanos são seres como nós outros.
A história de “A confissão da leoa” é contada por dois narradores em primeira pessoa – uma aldeã africana e um caçador. Seus relatos são alternados e nos dão dois pontos de vista complementares sobre o ataque de três leões a pessoas numa remota região da África. O caçador sai da capital intentando salvar os habitantes da aldeia, na companhia de um político e sua esposa, de um escritor, meio sem serventia, a princípio, e, depois de visitar o irmão e a cunhada num hospício, adentrar com todos os outros o país para o que ele planeja que será sua última caçada.
            Só que, ao chegar à aldeia, o caçador depara-se com uma população morta, não no sentido literal, mas metafórico: as pessoas, em especial as mulheres, encontram-se subjugadas por tradições culturais e opressões políticas, sociais e econômicas que as afogam inapelavelmente.
Na verdade, elas são como espelhos em que podemos nos mirar e nos reconhecer de várias formas – nas ordenações patriarcais que tanto dificultam a vida de mulheres em todo o mundo; nas injunções culturais que limitam nossas buscas por melhores condições de vida; nas opressões históricas e políticas que, global e localmente, forjaram e forjam desigualdades e explorações inaceitáveis mundo afora e mundo adentro.
Sim, porque toda a história nos faz visitar aquilo que nos faz humanos: nossos fantasmas escuros de indizíveis dos quais gostaríamos de fugir, mas que escritores como Mia nos fazem encarar; nosso tutano cheio de falhas que se refletem em organizações sociais e políticas espúrias e desconcertantes; nossas incompreensões internas que obnubilam nossa compreensão possível do outro.
O relato, lá longe pontilhado de realismo mágico ou mesmo temperado com mitos antigos, vai desconstruindo o “problema de fora” da África e vai, metaforicamente, descortinando o “problema de dentro”: é que, antes dos leões, há questões cruciais na aldeia – estupro, incesto, exclusão, discriminação, violência, covardia, conivência, assassinato, loucura, opressão...
É uma história difícil para quem já viveu o processo colonial e se acostumou a responsabilizar os de “fora” pelas mazelas gerais, sem o enfrentamento corajoso das questões de “dentro”.
A aldeia Kulumani, portanto, é uma metonímia: um pedacinho do mundo que o simboliza. E a proeza de Mia é equalizar o “fora” e o “dentro” de forma que visualizamos que “todos” são parecidos e perdem-se em conflitos de natureza vária os quais estão além de nossa capacidade de compreensão e explicação.
Uma mulher para quem “toda saída é uma emboscada”; um povo que escolheu “a segurança da obediência”; um homem que só sabia existir na doença emocional; outro homem que deseja a mulher do irmão; um pai que não acertou a deixar a filha “ser pessoa, livre e feliz”... são todas histórias que se reconhecem porque são de todos nós, em todos os séculos.
A saída, infere-se, é a palavra dita, buscada, escrita, sonhada, ouvida, porque ela é nossa “única roupa”; aquilo que salva, porque onde ela existe não há sangue; porque cada palavra ou cada letra é uma cor nova com que se olha o mundo; uma arma contra a opressão; só com ela pode-se lutar contra as “costas da razão”, elaborando-as e ressignificando-as para, devagar, chegarmos ao “ovo do tempo” quando, enfim, seremos todos conciliados e perdoados.
Mia Couto me faz lembrar João Guimarães Rosa: ambos forçam a linguagem além dos limites conhecidos a fim de inaugurarem novas intuições e percepções e compreensões...
Amei saber que “escutar já é falar”...
Então: “escutando” Mia e Rosa e lutando com palavras para falar deles ou com eles, refaço a trança que fui, sou, serei na linguagem que me justifica e ajuda a ir levando a vida, que não deixa de ser “a espera do que pode ser vivido”.
           Obrigada, Mia Couto.