quinta-feira, agosto 26, 2010

"O Quinze", de Rachel de Queiroz

Reli o livro "O Quinze", de Rachel de Queiroz, que tinha apenas 20 anos quando o concebeu. É sobre a seca de 1915, uma daquelas secas cíclicas nordestinas que passam deixando um rastro de destruição e fome...
Quando o Regionalismo nasceu no Romantismo, ele tinha um caráter ufanista – é que a gente tinha se livrado da "mala sem alça" que era o Processo Colonial e tudo era muito cor-de-rosa, a gente não tinha mais nada que atrapalhasse o que parecia ser um futuro brilhante para o país. As descrições alencarianas tendiam ao ideal, e tudo, na natureza nordestina, era belo e bom. A natureza nordestina presente em "O sertanejo" era tão acolhedora e bela quanto a gaúcha de "O gaúcho"; não havia problemas; a natureza, ao contrário, era a solução.
Aí veio o Regionalismo Realista ou, mais precisamente, Naturalista: o sertão ganha cores de ambiente determinador e destruidor e, então, não havia, para o personagem, nenhuma redenção possível, pois ele era totalmente vencido pela circunstância ambiental implacável.
Segue-se o nosso grande divisor de águas, Euclides da Cunha, que, olhando uma realidade brasileira – a Guerra de Canudos –, ultrapassou o determinismo europeu e inaugurou um jeito de ver o Brasil, independente da Europa.
O Regionalismo Nordestino de 30 é herdeiro dessa perspectiva, ou seja, olhando realidades nossas (a seca, a estrutura fundiária injusta, o patriarcalismo, a pobreza, as reações, a falta de horizontes, as relações sociais, familiares, os costumes, o atavismo religioso, as linguagens desviantes, o estudo das expectativas...), o autor se impõe o papel de denunciar o problema, avaliar causas e efeitos, descrever circunstâncias, analisar diferenças e semelhanças, comparar, explicar as especificidades nordestinas ao resto do Brasil, que precisava entender o porquê de aqui ter sido tão sangrenta a Revolução de 30. É que as raízes do "Ancien Regime" (usando uma expressão francesa), aqui no Nordeste, eram muito fundas e, quando o poder saiu das mãos dos proprietários, revolveu muita terra.
Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado e Érico Veríssimo – cada qual com suas circuntâncias, estilos e visões de mundo, é claro – retrataram sua região, seu estado, sua estrutura fundiária e respectiva produção agrícola (cana, cacau, carne...). Mas se mantinha o olhar de defesa dessa população, inaugurado no Pré-modernismo de Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto.
Assim, o sertanejo de Euclides, ou mesmo o Jeca Tatu de Lobato reaparecem em Chico Bento, um dos personagens centrais de "O Quinze", de Rachel. É que o livro tem dois núcleos paralelos e que se interligam – o de Chico Bento e sua família (sua esposa Cordulina e seus 5 filhos que a seca reduziu a 2), de classe dominada, e sua marcha de retirada da seca, totalmente destruídos; e o de Vicente e suas irmãs, Conceição e sua avó, Inácia, de classe dominante, também afetados pela seca, embora de forma menos intensa.
Em Rachel, muito mais do que a estrutura fundiária, é a seca a personagem central, é ela que quebra o equilíbrio mínimo de sobrevivência que os outros personagens têm, é ela o elemento desarticulador e desagregador, que detona o texto como resposta necessária do autor. Ou missão. Ou ato de responsabilidade possível.
É um livro triste, pois não há luz no fim do túnel da seca, vista como um atavismo inescapável, cíclico, degradador. As mudanças não trazem felicidade, só conformação, aceitação do inevitável, irrealização do amor, embate inútil entre o homem e a natureza titânica, invencível na sua brutalidade e na sua perseguição.
O que me admira é uma moça de apenas 20 anos pensar assim...

sábado, agosto 14, 2010

O Regionalismo na ficção brasileira

A busca da identidade nacional, no Brasil, foi um longo e árduo percurso histórico; o Processo colonial e todos os seus corolários criaram dificuldades inominávies para o projeto de independência política e, consequentemente, cultural. Durante 300 anos, o país não passou de um apêndice de Portugal, que, aqui, detinha poder absoluto.
Em 1822, uma série de episódios culminou com a Independência. No âmbito da cultura, coube ao Romantismo a tarefa de construir a correspondente independência cultural e, portanto, a consciência da nacionalidade. Nessa altura, o Brasil ainda tinha o "álibi" do Processo colonial, ou seja, tudo o que havia de errado, aqui, devia-se à instalação, entre nós, desse pacto injusto e desfavorável: escravidão, atraso, dependência... Descortinava-se, então, no horizonte, um futuro grandioso – estávamos livres das amarras que nos condenavam ao subdesenvolvimento.
Desse modo, o Romantismo descreveu o Brasil de modo idealizado. Florestas virgens, praias de areias brancas, mares verdes como esmeraldas líquidas, fauna ímpar (araras, jandaias, onças...), clima bom, céu de anil... Nesse verdadeiro paraíso terreal, colocou-se um habitante forte, orgulhoso, perfeito, bonito, bom, heroico. É nesse berço que nasce o nosso Regionalismo, filho do escritor José de Alencar.
Alencar, nosso primeiro escritor de âmbito nacional, planejou sua obra, no sentido de construir um painel histórico cultural do Brasil. Ambientou obras nos séculos XVI, XVII, XVIII e no seu tempo (primeira metade do século XIX), de maneira que descreveu o país, desde seus primódios. Percorreu sua História, descreveu suas geografias, inventou o índio como herói necessário (o elemento que estava aqui antes de o português chegar; portanto, o mais genuíno brasileiro) e visitou as suas "sociologias". Foi no projeto dessa brasilidade que nasceu o seu Regionalismo, que descreveu tanto o sertão nordestino como os pampas gaúchos, dentro, é claro, desse mesmo diapasão idealizante – paisagem e homem são igualmente perfeitos.
Esse Regionalismo, digamos, romântico não deixa de ser uma espécie de escapismo no tempo e no espaço – tem a ver com um desejo de compensação, típico do Romantismo, somado a uma necessidade de representação desse novo espaço social e político que se delineva no Brasil – o país livre. Constrói-se pela supervalorização do pitoresco, da "cor local" (como diz a crítica), ou seja, o Romantismo agrega à região valores, cores, sentimentos e qualidades que, na verdade, não lhe pertenciam, mas à cultura que nascia e precisava deles para crescer. Paralela à hipertrofia imagística e estilística, constata-se uma complacência com os aspectos negativos das respectivas regiões, que são mostradas somente no seu lado positivo.
O tiro pela culatra desse Regionalismo é que ele é confinante, autossuficiente e, perigosamente, provoca rivalidade.
No final do século XIX, o Regionalismo amadurece e despe-se do saudosismo, do escapismo e da idealização para ganhar contornos deterministas – o herói ganha estatura épica, pois luta contra um ambiente inóspito e adverso que o vence, necessariamente.
Mais tarde, já na década de 30 do século XX, o Regionalismo reaparece, no formato Modernista – escrito numa linguagem e numa forma francamente antitradicionalistas, ele mantém a linha de determinação ambiental realista e acrescenta à receita uma visão de esquerda, a princípio, que depois deságua em denúncia das questões sociais e políticas, potencializadas pela questão climática. Observe-se que ele, aqui, tem ligação com a estrutura agrária latifundiária, uma persistência colonial, que resiste à modernização do país trazida pela Revolução de 30. A narração do confronto entre opressores e oprimidos ou entre adversários políticos esclarece o desenho dessa combinação explosiva de injustiça climática e política para o resto do país, que tinha curiosidade sobre essas especificidades.
Nesse momento, acham-se já delineados todos os ingredientes daquilo que se entende por REGIONALISMO, que tira sua substância do local:
a) do fundo natural ou paisagem: clima, topografia, flora, fauna... (elementos que afetam a vida humana na região);
b) riquezas culturais (maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra): linguagem – modos de expressão nativos e populares, ritmos e sotaques diferentes –; reações dos indivíduos; tradições; cultura; civilização; etnia; formas de cozinhar, vestir, morar; lendas; mitos; tipos; imagem; simbologia...
Na verdade, longe de confinante e separatista, o estudo do Regionalismo e suas "personalidades" exerce um papel libertador, pois se dá dentro do conhecimento e, portanto, da aceitação da pluralidade, que é nossa maior riqueza.