quarta-feira, setembro 30, 2009

Segunda de primeira

Minha última segunda-feira foi abençoada.

De manhã, meus alunos do terceiro ano do Colégio Único me disseram que eu seria a professora homenageada na formatura, e exultei de contente!

Durante a tarde, chegou um aluno no atendimento de redação, sem texto na mão. Ele disse que tinha vindo contar uma história:

− É que eu entendi tudo por sua causa... Eu e minha mãe vínhamos andando e um homem esbarrou nela. “O senhor devia pedir licença ou desculpa...”, ela disse. Aí o homem bateu nela e, quando fui defendê-la, apanhei também. Telefonamos para o meu pai, que é policial, e ele estava numa viatura, bem próximo. Anotamos o número do ônibus em que o homem subiu, meu pai interceptou-o e ele foi preso. Tínhamos testemunhas e tudo, professora; fomos à delegacia e prestamos queixa. Vim agradecer a você, porque, quando o ouvi dizer que era vigilante, só me lembrei de Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, e da aula sobre Machado de Assis que a senhora me deu. E vim agradecer... Eu não teria entendido nada, professora, nem saberia o que fazer sem você... Minha mãe queria parar no meio da história, mas eu lhe disse que aquele homem precisava de um freio, seria perigoso deixá-lo sem a compreensão dos limites de sua função.

− Na verdade, devemos, os dois, agradecimentos a Machado, meu filho – eu disse, achando o menino corajoso, perspicaz e articulado.

De noite, quando minha aula terminou, outro aluno veio falar comigo:

− Tenho dois amigos que dão aulas num pré-vestibular para alunos de baixa renda em Afogados, o bairro onde moro, e eles me disseram que estavam tristes: seus alunos não iam poder fazer vestibular para a Federal, porque não tinham condições de pagar a taxa de inscrição. Eu não entendi e eles me explicaram que só os alunos do terceiro ano de escolas públicas tinham direito à isenção. Logo, como eles não estão matriculados, pois já concluíram o ensino médio, não têm direito a ela. Eu achei aquilo um absurdo! Fui ao Ministério Público, abri uma ação, e uma juíza deu sua sentença favorável a mim, ou seja, aqueles alunos poderão fazer a inscrição gratuitamente. Usei os princípios da igualdade e da causalidade na minha argumentação! Só estou contando isso porque eu queria dedicar essa história toda a você, que me tornou melhor este ano.

Confesso que tudo isso, junto, me fez chorar. Não é todo mundo que tem o privilégio da própria justificativa numa segunda-feira, o dia mais sem graça da semana.

Na verdade, este texto é um agradecimento a esses meninos maravilhosos que, nesse mundo bruto e sem sentido, conseguiram compreender o que os cerca e interferir no correr dos fatos, sendo sujeitos de suas vidas e, mesmo tão novos, alcançaram tão corretamente a vida de outras pessoas...

Estou obrigada a esses meninos, por tornarem não só eu mesma melhor, ouvindo em cada um deles o eco das batidas do meu próprio coração, mas também por começarem a viver tentando tornar o mundo inteiro melhor na ação de cada dia.

Neste mundão pragmático e materialista, é bom ouvir falar da arte como acervo viável para o compreender e o estar no mundo. Não é para todo mundo o entendimento dessa ferramenta irrenunciável e substantiva para lidar com a pluralidade e a singularidade, ao mesmo tempo – tarefa que nosso tempo simplificador e uniformizador parece ter desistido de cumprir.

O problema é que elas estão aqui dentro de nossa humanidade e pulsam, principalmente depois que o século dos extremos passou e navegamos na imprecisão e no relativismo do século XXI.

Uma balança de dois pratos é a minha utopia: sou pela diferença, se a ameaça for a uniformização; pela igualdade, se o perigo for a injustiça.

Sem a Literatura, lugar de interlocução entre o singular e o plural, minha utopia não se realizará. Se eu não for capaz de explicar tudo isso aos meus alunos, também não. Mas parece que, de vez em quando, acerto.


A Saulo e Denis, que, como diz João Cabral, são “como um caderno novo quando a gente o principia”.