"A hora da estrela", Clarice Lispector
“A hora da estrela” é a última obra de Clarice Lispector. É a que mais parece situar-se num lugar misterioso entre o Realismo e o Simbolismo: é um texto que descreve de forma objetiva as carências das personagens, mas também apresenta seus sonhos, seu inconsciente... Tudo isso por meio de uma linguagem claudicante, que revela carências e dificuldades de articulação de idéias e ora utiliza ditados populares, ora frases inusitadas cuja estrutura sintática parece pertencer a outra língua, de tão nova e surpreendente.
É um romance sobre dois desamparos. O de Macabéa e o de Rodrigo S.M., o narrador da história de Macabéa, que tanto se identifica com ela e que o tempo todo titubeia – não sabe se é Clarice, a autora; se é um personagem; se é onisciente; se, como Machado de Assis, conversa com o leitor... Diante do desamparo de Macabéa, Rodrigo se penaliza; do seu próprio, fica indeciso: não consegue titular a obra; pede desculpas o tempo todo pela “narrativa tão exterior e explícita”, o que adia até o limite o começo da história; confunde o leitor com frases encadeadas sem lógica; não sabe se deve contar a história de Macabéa ou se deve falar de sua dificuldade em lidar com a linguagem, da função do escritor, fazendo uso da função metalingüística... O texto, assim, transita entre o fato e o sussurro, como o próprio narrador confessa (ele simpatiza mais com o sussurro, mas resolveu se comprometer com o fato). Vem daí essa narrativa dupla, indecisa entre o contar uma história ou uma dificuldade de escrever.
É um romance que carece de personagens, são só 3 ou 4, se se puser Rodrigo, o narrador, na lista ou não. Tudo, portanto, carece e é desassistido, como Macabéa, a estrela da hora.
Macabéa é uma desvalida nordestina que mora no Rio de Janeiro, uma “cidade toda feita contra ela”. Ela não tinha, diz o narrador, e ele mesmo pergunta a seguir: “não tinha o quê?” E responde: “É apenas isso mesmo: não tinha”. Não lhe faltava doçura e obediência, mas a consciência do ser, não era capaz de saber o que era, “como um cachorro não sabe que é cachorro”. Teve uma infância sem boneca, perdeu pai e mãe e foi criada por uma tia de cujo contato ficara-lhe a cabeça baixa. Era encardida, pois não gostava de tomar banho, e tinha um jeito de olhar de quem tem asa ferida. Trabalhava como datilógrafa e morava com quatro amigas num quarto alugado. Em suma, tudo nela era “seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada”.
Coisas da vida, esse “café frio” encontra-se, na chuva, com Olímpico de Jesus Moreira Sales (o Moreira Sales era mentira, diz o narrador; ele só tinha o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai). Olímpico era metalúrgico, sua função “tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça”. Mas não pertence à categoria de Macabéa: gostava de dinheiro, tinha um dente de ouro, queria ser deputado (e foi, num futuro fora do livro, como o diz o narrador).
Havia entre esses dois uma impossibilidade completa de compreensão: ela não sabia dizer o que queria; ele também não sabia, mas defendia-se afirmando que sabia, porém não queria dizer.
Um passeio no zoológico foi o fim do romance: ela ficou com tanto medo do rinoceronte que se urinou; ele optou por Glória, colega de trabalho de Macabéa.
Glória tinha mãe, comida quente na hora certa, era carioca e seu pai trabalhava num açougue, o que para Olímpico era admirável. Ela tinha um tênue sentimento materno em relação a Macabéa e lhe deu a idéia de consultar um médico e, depois, uma cartomante, que previu o futuro de Macabéa: um alemão ia pedi-la em casamento e seu desamparo acabaria.
Mas parece que Macabéa foi atropelada.
O narrador lembra que é tempo de morangos, num hermetismo típico de quem, enfim, desiste dos fatos, da história, da lógica... de quem se vê incapaz de contar as duas histórias – a de Macabéia e a sua própria...
O século XX pulsa dentro desse livro sobre uma cidade sem pessoas, cujas palavras desencontradas não permitem compreensões. O século XX está refletido no espelho de Macabéa, que não o compreende nem a si própria. O século XX está guardado neste livro, em cujas páginas a técnica atropela o pouco de gente que resta ou faz de pessoas parafusos dispensáveis. O século XX existe na profissão morta de Macabéa, na sombra de desemprego que lhe ronda o presente e lhe rouba o futuro. O século XX repousa nesta história em que o meio de comunicação reduz o ouvinte a colecionador de anúncios e de informações que não lhe servem para nada.
Enfim, “que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.” O século XX está na indecisão entre o ponto e a interrogação presente nessa frase.
É um romance sobre dois desamparos. O de Macabéa e o de Rodrigo S.M., o narrador da história de Macabéa, que tanto se identifica com ela e que o tempo todo titubeia – não sabe se é Clarice, a autora; se é um personagem; se é onisciente; se, como Machado de Assis, conversa com o leitor... Diante do desamparo de Macabéa, Rodrigo se penaliza; do seu próprio, fica indeciso: não consegue titular a obra; pede desculpas o tempo todo pela “narrativa tão exterior e explícita”, o que adia até o limite o começo da história; confunde o leitor com frases encadeadas sem lógica; não sabe se deve contar a história de Macabéa ou se deve falar de sua dificuldade em lidar com a linguagem, da função do escritor, fazendo uso da função metalingüística... O texto, assim, transita entre o fato e o sussurro, como o próprio narrador confessa (ele simpatiza mais com o sussurro, mas resolveu se comprometer com o fato). Vem daí essa narrativa dupla, indecisa entre o contar uma história ou uma dificuldade de escrever.
É um romance que carece de personagens, são só 3 ou 4, se se puser Rodrigo, o narrador, na lista ou não. Tudo, portanto, carece e é desassistido, como Macabéa, a estrela da hora.
Macabéa é uma desvalida nordestina que mora no Rio de Janeiro, uma “cidade toda feita contra ela”. Ela não tinha, diz o narrador, e ele mesmo pergunta a seguir: “não tinha o quê?” E responde: “É apenas isso mesmo: não tinha”. Não lhe faltava doçura e obediência, mas a consciência do ser, não era capaz de saber o que era, “como um cachorro não sabe que é cachorro”. Teve uma infância sem boneca, perdeu pai e mãe e foi criada por uma tia de cujo contato ficara-lhe a cabeça baixa. Era encardida, pois não gostava de tomar banho, e tinha um jeito de olhar de quem tem asa ferida. Trabalhava como datilógrafa e morava com quatro amigas num quarto alugado. Em suma, tudo nela era “seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada”.
Coisas da vida, esse “café frio” encontra-se, na chuva, com Olímpico de Jesus Moreira Sales (o Moreira Sales era mentira, diz o narrador; ele só tinha o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai). Olímpico era metalúrgico, sua função “tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do lado errado, na ponta da cortiça”. Mas não pertence à categoria de Macabéa: gostava de dinheiro, tinha um dente de ouro, queria ser deputado (e foi, num futuro fora do livro, como o diz o narrador).
Havia entre esses dois uma impossibilidade completa de compreensão: ela não sabia dizer o que queria; ele também não sabia, mas defendia-se afirmando que sabia, porém não queria dizer.
Um passeio no zoológico foi o fim do romance: ela ficou com tanto medo do rinoceronte que se urinou; ele optou por Glória, colega de trabalho de Macabéa.
Glória tinha mãe, comida quente na hora certa, era carioca e seu pai trabalhava num açougue, o que para Olímpico era admirável. Ela tinha um tênue sentimento materno em relação a Macabéa e lhe deu a idéia de consultar um médico e, depois, uma cartomante, que previu o futuro de Macabéa: um alemão ia pedi-la em casamento e seu desamparo acabaria.
Mas parece que Macabéa foi atropelada.
O narrador lembra que é tempo de morangos, num hermetismo típico de quem, enfim, desiste dos fatos, da história, da lógica... de quem se vê incapaz de contar as duas histórias – a de Macabéia e a sua própria...
O século XX pulsa dentro desse livro sobre uma cidade sem pessoas, cujas palavras desencontradas não permitem compreensões. O século XX está refletido no espelho de Macabéa, que não o compreende nem a si própria. O século XX está guardado neste livro, em cujas páginas a técnica atropela o pouco de gente que resta ou faz de pessoas parafusos dispensáveis. O século XX existe na profissão morta de Macabéa, na sombra de desemprego que lhe ronda o presente e lhe rouba o futuro. O século XX repousa nesta história em que o meio de comunicação reduz o ouvinte a colecionador de anúncios e de informações que não lhe servem para nada.
Enfim, “que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só.” O século XX está na indecisão entre o ponto e a interrogação presente nessa frase.