Eu era uma vez uma jovem, há muitos anos, com extremas dificuldades de comunicação, que resolveu fugir da realidade, lendo romances atrás de romances, trancada no quarto.
Pensando que a literatura faria o serviço de me isolar, caí, desabada, na idade madura, no abismo da mais nítida compreensão da vida – a literatura é um túnel de fuga invertido!
E, agora, ganho o que queria perder – a vida mesma, descortinada...
Um aluno meu, recentemente, começando, aos tropeços, a ler o mundo, me perguntou:
– Professora, como posso acreditar no que leio nos jornais? Aquilo é verdade?
Eu me vi diante da encruzilhada da minha vida: comecei a ler mentiras e a realidade me foi revelada.
Por isso não acredito em quem escreve dizendo-se isento, morro de medo de quem acha que escreve a verdade, independente de uma versão subjetiva. Todo ato de expressão é, antes de tudo, pessoal e intransferível, e ninguém pode ser totalmente objetivo.
Foram visões de mundo particulares que partilhei, muitas, muitas; e essa pluralidade me ajudou a pensar, a ver, a mudar quando foi preciso, a priorizar e a secundarizar, ou seja, a ser uma pessoa no mundo, sabendo a exata dor e a exata delícia de ser o que é.
A literatura parece não servir para muita coisa: neste mundo tecnificado, científico, materialista, ela parece algo supérfluo e desnecessário; neste mundo de comunicação massificada, a expressão solitária e interpessoal parece não valer.
Mas, quando paro diante da televisão moderna, com seus canais incontáveis e sua programação contínua, fico com saudade da comunicação verdadeira – aquela em que uma pessoa fala porque tem o que dizer de único e necessário, porque escritores sabem o que dizer, e comunicadores de massa dizem apenas o que o público quer ouvir, o que não constitui ato de compromisso responsável.
E o mundo está, hoje, cheio de palavras ao vento, vazias de significado; palavras que servem para vender o que não é necessário; palavras que são etiquetas que valem mais que pessoas; palavras que compram, que se transmudaram em cartões de crédito, que transformaram o mundo num lugar esquisito, onde as palavras “mercado” e “consumidor” substituíram as palavras “justiça” e “ser humano”.
Taí: acho que sei, agora, o que é literatura: é um ato de resistência – as palavras vêm escritas e não voam e nem se perdem; é a verdadeira globalização (não essa massificante, uniformizadora, avassaladora, serpente sub-reptícia, camaleão de que já ouvi falar).
Na literatura, está a comunicação como ela deve ser: plural, necessária, formadora, interpessoal, responsável e libertadora (digo isso porque, inclusive, somos livres para ler até o fim um livro ou para desistir de uma leitura começada).
Também diria sem fronteiras: o importante não é que seja o paciente inglês, húngaro, alemão, francês, indiano; o importante é que seja agente, construtor de sua própria história, e ninguém é capaz de ser agente construtor de si mesmo, sem tomar conhecimento de como outras consciências se formaram.
Somos tranças de gente – nada mais.
E a literatura é busca, resposta, troca de experiências e descobertas. Antes de tudo, entendimento e compreensão.
E, porque li Pasternak, Fernando Pessoa, Flaubert, Isabel Allende, Lima Barreto, Kazantzaki, Durrel, Gabriel Garcia Marques etc. etc. etc. ..., sei como deveria se desenrolar a verdadeira globalização: no respeito das especificidades e, no fundo, das referências construtoras de identidade pessoal.
E, quando vejo o mundo todo uniformizado nos seus padrões de consumo (e mais sério que tudo: nos seus padrões de desejo), tenho saudade de como aprendi o outro: único, específico, pleno de identidade cultural e pessoal.
Porque somos diferentes, solitários, inxerocáveis, insubstituíveis (ontologicamente), mas somos iguais e merecemos, todos, direitos iguais.
E só a partir da quebra da lógica de dominação é possível refazer as relações entre os homens e desconstruir essa falácia da mundialização que significa reeditar processos históricos em que há perdedores e ganhadores.
Sem literatura, esse caminho mágico de formação de consciências pessoais e, portanto, de respeito ao outro, o que será de nós? Como Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, perpetuaremos essa lógica da dominação e caminharemos uns contra os outros indefinidamente.
A literatura é um caminho de construção do eu e caminho-de-construção-do-eu significa caminho de respeito ao outro.
Literatura é essa encruzilhada única de eus; é tecido justo e amplo de pessoas; é um lugar de registros de pluralidades, onde aprendemos que o outro e nós mesmos poderíamos ser o paraíso, aqui e agora.
Que possamos, um dia, fazer do mundo um lugar bonito em que seja possível viver em paz. Sem o fio das palavras, no entanto, esse tecido não estará à vista, nunca.
Acho que, ao fim e ao cabo, literatura é sonho também. E neste mundo globalizado, em que tantos acham que sonhar é sinônimo de comprar, tenho saudade do mais humano de todos os verbos que aprendi a conjugar, lendo: sonhar. Equilibrando-me no fio que separa aquilo-que-poderia-ser daquilo-que-a-realidade-é, comprometida, tento, lutando a luta vã das palavras, ajustar sonho e realidade. E la nave va.
Pronto. Acho que levantei um conceito de literatura. Fico com medo de dar por finda a tarefa e ter me esquecido de levantar algum ponto importante. Perdoem. Por mais que se diga, algo não é dito – esse é o motivo de haver tantos escritores dizendo tanto. E de alguns de nós sermos leitores ávidos por ler cada vez mais, tentando, todos, achar a última palavra, completa, que diria tudo. Ah! como a procuro...
Como diria João Cabral, essa palavra é “como a última onda que o fim do mar sempre adia”. Mas nos tornamos pessoas, quando, incessantemente, a buscamos.